terça-feira, 1 de março de 2016

Parasitas comem tomilho

Seppuku (切腹, lit. "cortar o ventre"?), vulgarmente conhecido no ocidente por haraquiri ou haraquíri (腹切 ou 腹切り?),[1] refere-se ao ritual suicida japonês reservado à classe guerreira, principalmente samurai, em que ocorre o suicídio por esventramento.”


Achei essa definição na internet depois de tudo. Resolvi procurar sobre enquanto a carne tava cozinhando. Você lembra do quanto gostava desse cozido? Acho que por isso lembrei de você no momento exato em que joguei um pouquinho de tomilho. Você sempre dizia: “você põe tomilho em tudo” e ria, ria…mas sabia que essa era a única carne que eu podia fazer e o tomilho o único tempero que eu sabia usar.

Eu liguei para sua mãe hoje, parece que o problema na coluna dela atacou de novo. Ele é assim, igual a você, de lua. Quando resolver complicar… Ela fingiu um bom humor mas quis desligar rápido, não sei se pela dor física ou pela dor que era me ouvir. Ela sempre foi tão boa pra gente.

Eu já pensei que você fosse muito rude, meio arrogante e metido a saber de tudo, mas hoje eu entendo que era só uma reação desesperada para tentar se salvar. Você não cabe no mundo, e você me dizia isso sempre. “Amor eu não consigo as vezes, dói, parece que tudo me aperta, tudo me fecha. Só queria que parasse.” Nos nossos últimos dias eu só te conhecia assim, desesperado ou com ódio. Não ódio de mim, isso eu sabia bem, mas eu que recebia toda a carga: “Parasita, entendeu? Você é uma merdinha de uma parasita!”. Quando você batia a porta e ia embora eu arrumava a casa como se nada tivesse acontecido, tomava um banho, rezava um pai nosso, chorava um pouco e tentava dormir. Confesso que muitas vezes pensei em trocar a fechadura, sumir. Eu não cabia em você. 

Quando você começou com os remédios eu fiquei mais aliviada, não sei, parecia que pela primeira vez você estava cedendo e procurando uma saída. Aí fomos comer no Severina e por achar que a carne tinha sal demais você criou uma discussão com o garçom e para não meter a porrada nele saiu do restaurante chutando a mesa. Eu fiquei ali, bebi umas caipirinhas, paguei minha conta e fui para casa, sem você. Claro que você não estava lá, você vivia como lobisomem nessas suas noites de fúria, só sumia e ia vagando na lua.

Joana veio aqui ontem, tomou um café e ficou provocando risos com aquela gargalhada dela, depois ela ficou em silêncio e disse que se arrependia de ter me apresentado a você, que eu não merecia. Eu entendo o desespero dos outros, em geral cheio de culpa, para procurar soluções pro sofrimento dos amigos, mas foi uma frase absurda. Claro que eu queria ter te conhecido, eu que não te merecia, o mundo… Ainda mais naquele dia todo lindo cheio de sol e frio em que nos conhecemos, eu não parava de falar de nervosa e você só ria enquanto tragava o cigarro. A gente não sabia que ia se beijar, se casar, morar juntos, mas a presença do outro deixava a gente daquele jeito. A gênesis de tudo é sempre tão bonita né? A gente diz que se faça luz e a luz se faz, mas no final um irmão sempre vai matar o outro. 

Você sabe o quanto eu estava cansada de tudo, você sabe, mas já não ligo para seu egoísmo, para a forma que você achou para resolver sua vida. Só queria dizer hoje que a vida não se resolve, amor. A vida é um eterno problema e nós somos a ferida aberta nesse corpo imortal, o que nos diverte é justo a eternidade, as bactérias que passam, os parasitas, como você dizia. Nós, parasitas, servimos para divertir enquanto a maioria vai morrendo sem saber. 
Mas sejamos sinceros, você não procurou nenhum caminho, você parou no meio dos remédios, desistiu em duas semanas de terapia. A única coisa que me culpo até hoje é de ter sido contaminada pela sua ansiedade, de resto, eu acho que tudo correu como devia.

Não penso em você quase nunca, acho que escondi você na minha memória por medo de reviver a cena. Aquele momento no qual você berrou comigo as mesmas palavras de sempre, os mesmo “Parasita” saíram da sua boca e eu, pela primeira vez, reagi. Eu taquei um prato no chão perto do seu pé e disse que não aguentava mais, não conseguia passar por aquilo, que tudo doía, que meus ossos rangiam sempre que você chegava em casa, que eu queria filhos, que eu queria foder mais, que eu queria você. Você ficou tão assustado que só começou a chorar muito, mas chorou tanto que caiu no chão. Te abracei um pouco e fui na cozinha pegar um copo de água e voltei dizendo que aquilo precisava acabar, mas me interrompi porque você já estava de joelhos com a faca na mão sorrindo para mim, eu deixei o copo cair e você enfiou ela na barriga e rasgou para o lado esquerdo. O sangue saiu calmo, sem desespero e eu agi da mesma forma; peguei você coloquei no meu colo e te deixei ir enquanto fazia aqueles carinhos nos seus cachos. Eu sabia que não era para ligar pra ninguém, que você precisava daquilo. Soube disso quando reconheci aquele seu sorriso sincero no meu colo, enquanto sangrava, da mesma forma que você sorriu no casamento. Depois liguei para ambulância, pros seus pais e sentei no sofá esperando eles chegarem enquanto olhava sua barriga aberta. Queria poder fuçar, abrir bem aquela ferida para ver se ainda restava alguma coisa sua ali, mas eu sabia a resposta; como você não cabia em lugar nenhum, nem dentro de si, aquela faca era sua alforria. Livre. 


Como disse não costumo pensar muito em você, mas lembro sempre quando pego o tomilho, corto a carne e limpo o sangue para cozinhá-la. 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

El(l)a, a Elza.

23 de Junho de 1937. Nasce Elza da Conceição Soares. Rio de Janeiro-RJ. Canceriana. Futura mãe, futura esposa, futura viúva.

Sempre ouvi muito a voz de Elza dentro de casa, no carro com meu pai, na rua. Papai me explicava sempre sobre a vinda de Elza até o nosso mundo, a diáspora do Planeta Fome para o programa da rádio e como cantar era tão importante quanto difícil para essa mulher. É curioso e urgente escrever sobre ela porque sempre me pego chorando ao ouvir sua voz, ao contar a sua história da mesma forma que meu pai me contou. Choro também porque a primeira vez que vi meu pai chorar foi quando o ouvi contar, cheio de admiração, sobre a juventude da Elza. Papai no carro virava e dizia: “Ela chegou no palco com todo mundo rindo dela, um vestido grampeado e sujo, e o Ari, para não perder a piada, perguntou de que planeta ela vinha (nesse momento ele ria com o sarcasmo que ele imaginava na cena). Então ela respondeu assim, filho: Senhor Ari Barroso, eu vim do Planeta Fome e vim aqui para cantar, posso? Todo mundo se calou, ela cantou e ganhou o primeiro lugar. Depois ela viveu a carreira dela, ouviu muita merda quando casou com o Garrincha e até falavam que ela tinha casado por dinheiro, mas ela…ela sempre foi incrível, sofreu tanto.” E papai chorava ali, dirigindo o carro e eu não entendia ainda muito bem o motivo, mas chorava junto. 

Cresci com o choro engasgado na história da Elza e sempre que retomo essa história, mesmo que ela não tenha acontecido exatamente dessa forma, eu retomo o choro e as exatas palavras do meu pai. 
Precisei então analisar os pontos principais que me fizeram ver a Elza como A Elza, A cantora, A brasileira. Comecei ouvindo A Mulher do Fim Do Mundo para voltar ao passado e fui até Malandro. Nessa música, que foi a primeira gravada do Jorge Aragão, ela interpreta o Malandro, a Rosinha e o narrador da história. Eu antes pensava que isso era coisa da minha cabeça, mas é só tentar escutar a música algumas vezes que você percebe esse triunvirato musical. Elza canta como o Malandro, dá a notícia como o amigo e sofre como a Rosinha…mas será possível?! É audácia demais! Mas já dizia o mito que foi confirmado por Pessoa: Amor e Alma são a mesma pessoa, Malandro e Rosinhas são a mesma (P)pessoa, por isso os últimos versos do poema: 

                                               Ergue a mão, e encontra hera, 
                                               E vê que ele mesmo era  
                                               A Princesa que dormia.


Atônito com essa coisa secretamente óbvia eu corri para Rap da Felicidade onde Elza é antecedida por um arranjo que toca “Se essa rua fosse minha” com a batida mais gostosa. Isso da relação cantor e instrumentos é interessante demais, faço uma pausa para explicar o que percebo: Também quando criança e na presença de meu pai lembro de ter falado para ele, enquanto o mesmo me apresentava Ella Fitzgerald, que a Ella parecia conversar com os instrumentos e todos a respondiam prontamente; em algumas músicas inclusive, todos pareciam terminar uma conversa gargalhando. No caso da Elza eu imaginei que fosse parecido, mas não é. Realmente a troca de L por Z em um nome próprio faz toda uma diferença musical. Elza não é tão irmã e amiga dos instrumentos como Ella, Elza é mãe, da origem, vida e permissão para que os sons aconteçam. Não é uma simples questão de potência vocal e nem uma tentativa de comparar Ella com Elza, mas perceber também, com surpresa, que ela é a própria música. Como dizia meu pai: “Ela poderia cantar até Atirei o Pau no Gato que seria emocionante”. Inclusive, mesmo eu não gostando de Meu Guri, Elza canta essa música em um vídeo sem acompanhamento algum, só na voz, só “no gogó”, e o Arnaldo Antunes fica tão feliz, tão emocionado que só consegue dizer a coisa mais simples que se pode: É tão bonito você fazendo ela a capella… Essa música pode doer em muita gente mas dói nela de uma forma que só podemos, também, comentar da forma mais simples possível. Elza conclui sobre a música: Na hora eu faço toda…mas vai me dando uma agonia pra cantar Meu Guri, cara.

Tentando voltar ao Rap da Felicidade, quando ela começa com uma cirandinha sobre uma rua, narra a vida que ela viu de perto das favelas e termina com uma quase marchinha “ah ah ah minha pipa tá no ar”, ela vai de novo a três lugares diferentes, mas muito próximos, três mundos que ela conhece bem… Muito Brasil, muita pobreza, muito barata, é a carne da Elza e a voz dela. Talvez justo por isso sua voz não seja doce, não seja linear ou “direitinha” como gostam de dizer, a voz dela é a voz que todo mundo tem mas tem medo de ouvir. Não acho que seja somente a voz do milênio como disse a BBC, mas acho que ela é a voz da gente. 


Esse último CD lançado por ela me deu muito o que falar e muitos nós e memórias para resolver. Acho que comecei a escrever por isso, por ela, pelo meu pai, por mim. Meu pai dizia que resolveu, junto a um amigo na faculdade, a chamar Elza somente por Ela, ou A cantora. Ele me disse que tentaram arrumar uma forma de invocar um santo nome sem dar nomes. Eu ainda prefiro o nome que ela tem e as mil formas que ela se apresenta, que ela performa. Ela é uma presença, que no final realmente se tornou aquilo que canta no início de seu último CD: Meu choro não é nada além de carnaval, é lágrima de samba na ponta dos pés. Elza sempre deixou a dor na avenida, sempre dançou no chafariz. Só não posso, mesmo diante de toda essa grandiosidade, dizer que Elza é uma deusa, porque os deuses, diferentemente dela, são em algum momento esquecidos.  

domingo, 4 de outubro de 2015

Recaída

Minha mãe me contava que só podemos falar sobre aquilo que conhecemos bem, mas as vezes o que conhecemos é tão soturno que fica difícil ter o que falar. 

Também por outro conselho de minha mãe sobre formas de escrever, recorri ao dicionário para entender a palavra-tema e dentre os três significados do verbete Redenção, eu encontrei: Ajuda ou recurso capaz de livrar ou salvar alguém de situação aflitiva ou perigosa. Lendo essa definição e correndo os olhos pelas definições das palavras vizinhas, percebi como as palavras que começam em R, em geral, são cheias de esperança. O R te força muitas vezes a tentar de novo aquilo que não deu certo, ou que deu tão certo que você quer fazer pelo resto da vida. Redesenhar, refazer, reeducar, recolher, respirar…

Desde pequeno entendo a redenção sem saber. Me parece que é a palavra mais cheia de esperanças vazias, porque ela nunca funciona. Mesmo se usarmos o clássico exemplo do homem Cristo, a redenção é uma pessoa no campo gritando para que o piloto do avião lá no alto não bata, não caia, não durma. O avião sempre cai e a pessoa sempre se culpa. 

Foi assim a vida e queda de meu pai, não teve ascenção. Sei bem o quanto minha mãe tentou, o quanto ela gritou para que ele não caísse, mas a queda… E eu olhava meu pai e perguntava “porque você não me vê?”, mas ele não podia ver nada. Papai nasceu no próprio escuro.
Dessa experiência o que se aprende? Na verdade, o que se aprende de toda e qualquer experiência? A repetir erros de uma maneira mais refinada e cheia de justificativas. Foi o que eu fiz e ainda faço sempre que surge uma oportunidade. 

Logo a Redenção se espalha como mais um dos mitos católicos, como a culpa, como o perdão. Somos nós capazes de viver essas três coisas ao mesmo tempo? Peço perdão por preencher linhas com memórias afetivas ou íntimas demais; mas não escrevo isso somente porque é o que eu sei, mas sim porque todos os mitos da elevação celeste católica começam na família, certo?

Vivemos então as repetições freudianas dos erros dos nossos pais. Percorri, por isso, Cidades Invisíveis e tentei penetrar terrenos impenetráveis da cabeça/coração de algumas pessoas, tentando resgatar alguns pilotos de avião como fez minha mãe, como fazemos todo dia. Só que por mais inevitável que seja a queda do objeto, quem sente mais o impacto somos nós, os telespectadores que se convencem do falso poder de salvação. Aquilo que cai já está na trajetória de queda desde seu nascimento, aquilo está feito na queda, se acostumou. O final daquele longo “caindo” pode ser muitas vezes a morte, e quem sobrevive fica revivendo aquele fim por muito tempo, por diversos ângulos. 
Será que no final existe uma reação em cadeia? Aquele que cai atrai o outro para o centro, que esse, por sua vez, puxa mais um, e mais um, e mais um…

O desespero sempre me cala, só meu interior grita nessas horas. Releio então uns versos de Rilke e tenho a certeza de que o redentor é um mito necessário.

“Quem se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse 
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. (…)”


Rainer Maria Rilke (Elegias de Duíno)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Em 2014, se tem uma imagem recorrente, para mim, é a do desespero. Eu estive desesperada, acelerada. Presa em um consumo esquizofrênico e descabido. As sextas que só acabavam quando já não havia forças nas manhãs de sábado. Depois as quintas, as quartas e até as segundas porque eu já estava lá e aquela aula de terça era uma palhaçada. Eram os 22 anos, a melhor idade do mundo. 

Como eu escrevia! Eu não podia fazer outra coisa, então eu só vivia e escrevia: assim me pareceu, assim eu me senti importante. 

Agora eu me vejo presa a uma produção cada vez mais lenta. Leio muito. Passo horas fitando as paredes do meu quarto, percebendo o verde do teto através de um descascado. Anos depois eu pintei a parede de verde, do mesmo verde da infância e agora a tinta branca do teto cai e me lembra. Essa parede que ninguém mais pinta, lixa ou liga. Ela está arruinada. 

Quando foi que a ruína se instalou?

Existe um bar pequeno na Mangueira, que sempre vejo do 371 e ele é no estilo sobrado, com uma placa desbotada pelos anos que diz “Bar 24 Horas”: Simples. Assim, eu consegui entender porque nas manhãs de sábado sempre tem tanta gente por ali. Eu adoro o conceito de 24 horas
Café Lamas
churrasquinho da Central
Pizzaria Guanabara 
Zona Sul Ipanema
barraquinhas de terminal rodoviário
loja de conveniência de posto de gasolina
Fornalha (pra mim é sempre Fornalha)
Mcdonalds da Saens Peña 
Quiosques-oásis da região dos Lagos 
e eu adoro saber que no meio das noites vai haver aquela luz artificial, o farol das insônias ou a lanterna dos afogados como minha mãe já cantava no karaokê. Lembro de ouvir muito Cazuza também. No carro tinha Legião Urbana, e por isso acho que a nossa geração cada vez mais vê os pais como os humanos que são, crescemos com aquele negócio de você diz que seus pais não te entendem mas é você que não entende seus pais. E eu acho que pensar nos meus pais embora não pareça é o que eu mais faço; eu penso neles, os entendo, os admiro. Eu olho pro teto agora e penso neles. Não poderia deixar de falar sobre eles nessa casa.

A rotina tem sido isso. Essa preguiça. Eu enrolada em cobertores e essa preguiça. Meus pais. As noites. As horas. A minha volta. A minha volta, que sempre parece estar no futuro. E eu penso e eu não consigo dormir. Não sei se voltei. Nunca passei tanto tempo da minha vida em uma posição só, assim, fitando o teto. Não sei se importa também. A pizza das 5 da manhã importa e ela é gostosa demais.

domingo, 3 de maio de 2015

05

Paulinha,

Estou ouvindo Chão de Giz nesse momento e nem gosto do Zé Ramalho. Sabe o que isso quer dizer? Que estou ficando cafona, que estou apaixonado. Lembro que você pediu para te avisar quando isso tornasse a acontecer e está começando a acontecer. Você acha que eu me apaixono muito facilmente, Paula? É coisa de câncer no mapa, não?

A vida tem tomado uma forma mais tranquila e fluida, onde eu posso procurar descansos, diversões e paz com a mesma rapidez que respiro. Isso me deixa inquieto, isso de ter muitas opções, muitos caminhos e não saber ao certo para onde e como ir. Sou um careta tentando se libertar.

Mamãe agora namora sabia? Ela me prova a cada segundo que o amor tem uma idade sim, aquela idade congelada entre os 12 e 16 anos, onde o belo é o olhar do outro, o espírito do outro, a vida do outro. Um eterno Madrigal Melancólico extremamente carinhoso e suave que contagia tudo ao redor... Não disse que estava ficando cafona? Mas acho que não é nem o amor e a paixão, é a felicidade do ser e estar bem sozinho, de ver que as coisas se ajustam antes mesmo que percebamos. Leio agora minha primeira carta e aquilo de termos a paz que sempre esperamos se confirma hoje. Somos paz.

Sempre me apaixono por aqueles me desarmam, Paulinha. Foi assim com você e está sendo assim com esta pessoa de agora. Uma pessoa que só não é mais bonita que o próprio nome, que o próprio ar. Acho que me apaixonei pela paixão com a qual ela fala da vida, dos ídolos, deusas e passado. Ela tem beleza até nos espaços vazios.

Tenho lembrado muito de meu pai. Sempre me lembro do meu pai pela música. Acho que a forma com que ele passava horas me apresentando/explicando músicas me deixou a única e a melhor boa lembrança dele. Por isso que Caetanos, Bethanias, Elzas, Gals e outros são tão importantes para mim; eles fazem uma ponte. Já disse e repito: você iria amar conhece-lo.

Ando me sentindo preso a um futuro muito certo e muito fácil. Não tenho nada a esperar porque as coisas já estão definidas e prontas, só preciso deixar solto. Fico inquieto comigo por me achar doido em não se preocupar mais em estar ou não namorando, estar ou não estudando, estar ou não caminhando. Prometo que vou sair dos roteiros, Paula...prometo.

Falo de você o tempo inteiro e te invoco sempre para você banir o iceberg do meu naufrágio. Meu feitiço de proteção é você e por isso assino todas essas cartas da mesma forma:


Queria que tudo fosse tão fácil quanto é gostar de ti. Sigo então sem medo da morte, apenas com medo do sem você.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

03

Paulinha,

Fico feliz de ficar com a carta 03, o número três é meu número da sorte, o da minha numerologia e o número perfeito pros antigos. Ele representa o início, o meio e o fim. Gosto dele porque nunca sei em qual momento da história da humanidade nós deixamos de entender a diferença entre início, meio e fim. Talvez a gente só tenha escolhido ignorar para fingir que não existem limites muito definidos que separam esses três momentos.

No início da sua partida eu comecei um diário de sonhos. Meu homeopata disse que é importante anotar os sonhos, é como um diário de bordo. Quando ele disse isso, Paula, eu fiquei com tanto medo, me subiu um arrepio... Acho que ele tentou passar essa mensagem de uma forma tranquila ou bonita, mas eu só consigo pensar: se o caderno de sonhos é um diário de bordo, o que é o nosso naufrágio? Sempre tive medo desses sonhos, das coisas que se encaixam na minha cabeça e decidem não sair mais, talvez por isso eu tenha decidido te escrever apenas cartas e não mensagens diárias como havíamos combinado. Nossa cabeça cria pelo menos três coisas perigosas por dia. Fellini praticamente enlouqueceu mais com seu diário de sonhos, né? É disso que eu tenho medo, achar o naufrágio dentro da gente, sabotar o navio para vê-lo afundando.

Vivo o meio da sua partida agora, e apesar de parecer uma carta melancólica ou suicida, é apenas mais um registro de saudades, de drama, de sonhos. Acho que saudades, dramas e sonhos são as três coisas perigosas que nossa cabeça cria diariamente. É importante que eu escreva isso porque acabei de viver o drama de ver aquele filme meio bobinho “As Vantagens de ser invisível”. Já viu? Senti a necessidade de te escrever logo em seguida porque acho que ele me fez entender a sua relação com despedidas e a minha possível teimosia em ignorar todas elas. Como é fácil se distanciar e impossível se despedir, não? Acho que pra quem vai e não volta é sempre mais fácil do que pra quem fica e não pode ir.

Espero o final da sua partida então, não só pelas saudades e pelo carinho, mas para que esse entendimento sobre despedidas seja possível em mim, mais real. Acho que a vida fica muito mais cômica com partidas, como términos de namoro e a sequência que as pessoas dão a suas vidas pós término. Não posso criticar muito a continuação da vida após amor dos outros, se eu mesmo às vezes, me coloco em queda ou em pingue pongue, pulando de coração em coração.

Lembre-se sempre: não importa qual seja a sua decisão e o seu naufrágio, não suje o carpete.

Queria que tudo fosse tão fácil quanto é gostar de ti. Sigo então sem medo da morte, apenas com medo do sem você.


PS: Tente reler tomando sorvete de creme com um cálice de Limoncello por cima, talvez ajude. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

01

Paulinha,

Aconteceu tanta coisa depois que você foi embora... Foi embora mesmo? Essas idas com prazo de validade me confundem, porque a pessoa sempre volta outra e a que foi talvez suma um pouquinho. Sorte que mudança, com e em você, sempre foi a melhor coisa.

Quando você saiu eu estava começando um romance e uma doença. Os dois acabaram de forma tranquila e até mesmo engraçada, só deixaram umas marquinhas, tipo fuligem que sai rápido, mas te deixa sujinho. É que esse romance entrou no carnaval e o carnaval despertou dores no coração dele que já não existiam mais no meu. Será que um dia as pessoas vão aprender a ir embora sempre pra frente e não pro passado?

Não é difícil encontrar outras festas e “zoeiras”, mas é diferente. As nossas festas tinham um endereço diferente que servem até mesmo para justificar a frase do Serguei “O rock sou eu.”. Nós éramos a festa. Por isso é que fico meio assustado quando eu rio do nada e não tem você do lado para entender aquele sorriso que não quer dizer nada. Você faz falta em mim.

Ainda fico bêbado e faço parte de grupos louquinhos pelos dias e noites da cidade, mas não tem você para entender os pesos, as energias negativas, para bloquear os caretas... Como eu seguro isso tudo sozinho, mulher? O mundo que já era estreito fica mais apertado sem você.

É estranho a cada sonho, a cada frase bonita de livro, cada farra e loucura não ter você como primeiro recurso para contar, para viver. Aí eu acabo esquecendo tudo isso só porque você não está mais do meu lado como estava quase todo dia, toda ligação, toda mensagem. Eu culpo seu crescimento, sua genialidade, sua leveza com a vida e com o mundo, por toda essa distância.

Esse ano, mesmo começando sem você, vai ser tão incrível, Paula. Você sente isso quando olha pra janela no final da tarde tomando aquele chazinho que te deram aí, não é? Não parece que tudo aquilo que a gente viveu e que nos aporrinhava vai se transformar na paz que a gente quiser? O final desse recente e prematuro romance fechou as portas, para sempre, daquele amor mais antigo e de difícil fim, o que é lindo. O início desse ano me traz um projeto de pesquisa tão incrível que pela primeira vez na vida eu me sinto inteligente. Talvez só você entenda como é importante para mim me reconhecer inteligente...

Não somos amigos porque nunca brigamos, mas porque sabemos que não existe um terço de disposição para brigarmos por qualquer (in)diferença no outro. É aí que eu sinto saudades da sua voz, de quando eu não entendo o que você fala porque você está rindo muito. Ou quando você revira os olhos pedindo para que alguma entidade te tire de uma situação insuportável.

Você está feliz e eu mais ainda. Mesmo com você longe fico feliz em sentir essas saudades porque percebo que eu não preciso de você e nem você de mim, e justo por isso somos indispensáveis para o outro.

Queria que tudo fosse tão fácil quanto é gostar de ti. Sigo então sem medo da morte, apenas com medo do sem você.