domingo, 21 de fevereiro de 2016

El(l)a, a Elza.

23 de Junho de 1937. Nasce Elza da Conceição Soares. Rio de Janeiro-RJ. Canceriana. Futura mãe, futura esposa, futura viúva.

Sempre ouvi muito a voz de Elza dentro de casa, no carro com meu pai, na rua. Papai me explicava sempre sobre a vinda de Elza até o nosso mundo, a diáspora do Planeta Fome para o programa da rádio e como cantar era tão importante quanto difícil para essa mulher. É curioso e urgente escrever sobre ela porque sempre me pego chorando ao ouvir sua voz, ao contar a sua história da mesma forma que meu pai me contou. Choro também porque a primeira vez que vi meu pai chorar foi quando o ouvi contar, cheio de admiração, sobre a juventude da Elza. Papai no carro virava e dizia: “Ela chegou no palco com todo mundo rindo dela, um vestido grampeado e sujo, e o Ari, para não perder a piada, perguntou de que planeta ela vinha (nesse momento ele ria com o sarcasmo que ele imaginava na cena). Então ela respondeu assim, filho: Senhor Ari Barroso, eu vim do Planeta Fome e vim aqui para cantar, posso? Todo mundo se calou, ela cantou e ganhou o primeiro lugar. Depois ela viveu a carreira dela, ouviu muita merda quando casou com o Garrincha e até falavam que ela tinha casado por dinheiro, mas ela…ela sempre foi incrível, sofreu tanto.” E papai chorava ali, dirigindo o carro e eu não entendia ainda muito bem o motivo, mas chorava junto. 

Cresci com o choro engasgado na história da Elza e sempre que retomo essa história, mesmo que ela não tenha acontecido exatamente dessa forma, eu retomo o choro e as exatas palavras do meu pai. 
Precisei então analisar os pontos principais que me fizeram ver a Elza como A Elza, A cantora, A brasileira. Comecei ouvindo A Mulher do Fim Do Mundo para voltar ao passado e fui até Malandro. Nessa música, que foi a primeira gravada do Jorge Aragão, ela interpreta o Malandro, a Rosinha e o narrador da história. Eu antes pensava que isso era coisa da minha cabeça, mas é só tentar escutar a música algumas vezes que você percebe esse triunvirato musical. Elza canta como o Malandro, dá a notícia como o amigo e sofre como a Rosinha…mas será possível?! É audácia demais! Mas já dizia o mito que foi confirmado por Pessoa: Amor e Alma são a mesma pessoa, Malandro e Rosinhas são a mesma (P)pessoa, por isso os últimos versos do poema: 

                                               Ergue a mão, e encontra hera, 
                                               E vê que ele mesmo era  
                                               A Princesa que dormia.


Atônito com essa coisa secretamente óbvia eu corri para Rap da Felicidade onde Elza é antecedida por um arranjo que toca “Se essa rua fosse minha” com a batida mais gostosa. Isso da relação cantor e instrumentos é interessante demais, faço uma pausa para explicar o que percebo: Também quando criança e na presença de meu pai lembro de ter falado para ele, enquanto o mesmo me apresentava Ella Fitzgerald, que a Ella parecia conversar com os instrumentos e todos a respondiam prontamente; em algumas músicas inclusive, todos pareciam terminar uma conversa gargalhando. No caso da Elza eu imaginei que fosse parecido, mas não é. Realmente a troca de L por Z em um nome próprio faz toda uma diferença musical. Elza não é tão irmã e amiga dos instrumentos como Ella, Elza é mãe, da origem, vida e permissão para que os sons aconteçam. Não é uma simples questão de potência vocal e nem uma tentativa de comparar Ella com Elza, mas perceber também, com surpresa, que ela é a própria música. Como dizia meu pai: “Ela poderia cantar até Atirei o Pau no Gato que seria emocionante”. Inclusive, mesmo eu não gostando de Meu Guri, Elza canta essa música em um vídeo sem acompanhamento algum, só na voz, só “no gogó”, e o Arnaldo Antunes fica tão feliz, tão emocionado que só consegue dizer a coisa mais simples que se pode: É tão bonito você fazendo ela a capella… Essa música pode doer em muita gente mas dói nela de uma forma que só podemos, também, comentar da forma mais simples possível. Elza conclui sobre a música: Na hora eu faço toda…mas vai me dando uma agonia pra cantar Meu Guri, cara.

Tentando voltar ao Rap da Felicidade, quando ela começa com uma cirandinha sobre uma rua, narra a vida que ela viu de perto das favelas e termina com uma quase marchinha “ah ah ah minha pipa tá no ar”, ela vai de novo a três lugares diferentes, mas muito próximos, três mundos que ela conhece bem… Muito Brasil, muita pobreza, muito barata, é a carne da Elza e a voz dela. Talvez justo por isso sua voz não seja doce, não seja linear ou “direitinha” como gostam de dizer, a voz dela é a voz que todo mundo tem mas tem medo de ouvir. Não acho que seja somente a voz do milênio como disse a BBC, mas acho que ela é a voz da gente. 


Esse último CD lançado por ela me deu muito o que falar e muitos nós e memórias para resolver. Acho que comecei a escrever por isso, por ela, pelo meu pai, por mim. Meu pai dizia que resolveu, junto a um amigo na faculdade, a chamar Elza somente por Ela, ou A cantora. Ele me disse que tentaram arrumar uma forma de invocar um santo nome sem dar nomes. Eu ainda prefiro o nome que ela tem e as mil formas que ela se apresenta, que ela performa. Ela é uma presença, que no final realmente se tornou aquilo que canta no início de seu último CD: Meu choro não é nada além de carnaval, é lágrima de samba na ponta dos pés. Elza sempre deixou a dor na avenida, sempre dançou no chafariz. Só não posso, mesmo diante de toda essa grandiosidade, dizer que Elza é uma deusa, porque os deuses, diferentemente dela, são em algum momento esquecidos.