terça-feira, 1 de março de 2016

Parasitas comem tomilho

Seppuku (切腹, lit. "cortar o ventre"?), vulgarmente conhecido no ocidente por haraquiri ou haraquíri (腹切 ou 腹切り?),[1] refere-se ao ritual suicida japonês reservado à classe guerreira, principalmente samurai, em que ocorre o suicídio por esventramento.”


Achei essa definição na internet depois de tudo. Resolvi procurar sobre enquanto a carne tava cozinhando. Você lembra do quanto gostava desse cozido? Acho que por isso lembrei de você no momento exato em que joguei um pouquinho de tomilho. Você sempre dizia: “você põe tomilho em tudo” e ria, ria…mas sabia que essa era a única carne que eu podia fazer e o tomilho o único tempero que eu sabia usar.

Eu liguei para sua mãe hoje, parece que o problema na coluna dela atacou de novo. Ele é assim, igual a você, de lua. Quando resolver complicar… Ela fingiu um bom humor mas quis desligar rápido, não sei se pela dor física ou pela dor que era me ouvir. Ela sempre foi tão boa pra gente.

Eu já pensei que você fosse muito rude, meio arrogante e metido a saber de tudo, mas hoje eu entendo que era só uma reação desesperada para tentar se salvar. Você não cabe no mundo, e você me dizia isso sempre. “Amor eu não consigo as vezes, dói, parece que tudo me aperta, tudo me fecha. Só queria que parasse.” Nos nossos últimos dias eu só te conhecia assim, desesperado ou com ódio. Não ódio de mim, isso eu sabia bem, mas eu que recebia toda a carga: “Parasita, entendeu? Você é uma merdinha de uma parasita!”. Quando você batia a porta e ia embora eu arrumava a casa como se nada tivesse acontecido, tomava um banho, rezava um pai nosso, chorava um pouco e tentava dormir. Confesso que muitas vezes pensei em trocar a fechadura, sumir. Eu não cabia em você. 

Quando você começou com os remédios eu fiquei mais aliviada, não sei, parecia que pela primeira vez você estava cedendo e procurando uma saída. Aí fomos comer no Severina e por achar que a carne tinha sal demais você criou uma discussão com o garçom e para não meter a porrada nele saiu do restaurante chutando a mesa. Eu fiquei ali, bebi umas caipirinhas, paguei minha conta e fui para casa, sem você. Claro que você não estava lá, você vivia como lobisomem nessas suas noites de fúria, só sumia e ia vagando na lua.

Joana veio aqui ontem, tomou um café e ficou provocando risos com aquela gargalhada dela, depois ela ficou em silêncio e disse que se arrependia de ter me apresentado a você, que eu não merecia. Eu entendo o desespero dos outros, em geral cheio de culpa, para procurar soluções pro sofrimento dos amigos, mas foi uma frase absurda. Claro que eu queria ter te conhecido, eu que não te merecia, o mundo… Ainda mais naquele dia todo lindo cheio de sol e frio em que nos conhecemos, eu não parava de falar de nervosa e você só ria enquanto tragava o cigarro. A gente não sabia que ia se beijar, se casar, morar juntos, mas a presença do outro deixava a gente daquele jeito. A gênesis de tudo é sempre tão bonita né? A gente diz que se faça luz e a luz se faz, mas no final um irmão sempre vai matar o outro. 

Você sabe o quanto eu estava cansada de tudo, você sabe, mas já não ligo para seu egoísmo, para a forma que você achou para resolver sua vida. Só queria dizer hoje que a vida não se resolve, amor. A vida é um eterno problema e nós somos a ferida aberta nesse corpo imortal, o que nos diverte é justo a eternidade, as bactérias que passam, os parasitas, como você dizia. Nós, parasitas, servimos para divertir enquanto a maioria vai morrendo sem saber. 
Mas sejamos sinceros, você não procurou nenhum caminho, você parou no meio dos remédios, desistiu em duas semanas de terapia. A única coisa que me culpo até hoje é de ter sido contaminada pela sua ansiedade, de resto, eu acho que tudo correu como devia.

Não penso em você quase nunca, acho que escondi você na minha memória por medo de reviver a cena. Aquele momento no qual você berrou comigo as mesmas palavras de sempre, os mesmo “Parasita” saíram da sua boca e eu, pela primeira vez, reagi. Eu taquei um prato no chão perto do seu pé e disse que não aguentava mais, não conseguia passar por aquilo, que tudo doía, que meus ossos rangiam sempre que você chegava em casa, que eu queria filhos, que eu queria foder mais, que eu queria você. Você ficou tão assustado que só começou a chorar muito, mas chorou tanto que caiu no chão. Te abracei um pouco e fui na cozinha pegar um copo de água e voltei dizendo que aquilo precisava acabar, mas me interrompi porque você já estava de joelhos com a faca na mão sorrindo para mim, eu deixei o copo cair e você enfiou ela na barriga e rasgou para o lado esquerdo. O sangue saiu calmo, sem desespero e eu agi da mesma forma; peguei você coloquei no meu colo e te deixei ir enquanto fazia aqueles carinhos nos seus cachos. Eu sabia que não era para ligar pra ninguém, que você precisava daquilo. Soube disso quando reconheci aquele seu sorriso sincero no meu colo, enquanto sangrava, da mesma forma que você sorriu no casamento. Depois liguei para ambulância, pros seus pais e sentei no sofá esperando eles chegarem enquanto olhava sua barriga aberta. Queria poder fuçar, abrir bem aquela ferida para ver se ainda restava alguma coisa sua ali, mas eu sabia a resposta; como você não cabia em lugar nenhum, nem dentro de si, aquela faca era sua alforria. Livre. 


Como disse não costumo pensar muito em você, mas lembro sempre quando pego o tomilho, corto a carne e limpo o sangue para cozinhá-la. 

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