Eu e um amigo, após vermos esse filme em uma segunda, fomos para um ponto de ônibus perto da casa dele às seis da manhã, quando moradores começam a descer com os cachorros, padarias a serem abertas e o Sol a anunciar um futuro gracejo. Por acaso, fomos abordados por um personagem – desculpem-me, mas não consigo vê-lo como outra coisa – que estava claramente trincado. O indivíduo, como o policial se referiu no RO – caricatamente genial – portava uma faca pequena e lascada, e disse que queria algo de valor, qualquer coisa de valor; o que tínhamos a oferecer, no caso, era um celular velho, um HD externo do meu amigo com todas as temporadas de Queer as Folk e a minha câmera analógica com um filme cheio de imagens fofas em aniversários, que convenhamos, imagino não garantir muita grana quando é trocada por crack. Ah, e o dinheiro, sempre o dinheiro! Tínhamos 40 reais. Sem valor, mas que deu pra levar, só pela aporrinhação: minha chave de casa, carteira de identidade e carteira do plano de saúde, o de praxe.
Ele pegou a bolsa rasgada que já passou muitos perrengues comigo, enfiou debaixo do braço e fez sinal para um ônibus que ironicamente ia para perto da minha casa. Era uma figura com duas chupetas penduradas no pescoço, embora alto, era bastante magro e assim que entrou no ônibus, aquela figura me fez ser pega por uma vontade de gargalhar enquanto meu amigo estava com cara de “que porra é essa?”. Ele perguntando se éramos namorados, como se fosse fazer alguma diferença. “Só é a minha amiga, mata”. Ele falando pra gente não fazer nada, pois iríamos nos machucar, despertando todo o ar de tragédia-comédia de uma realidade paralela em que somos esfaqueados e morremos de tétano. É triste: nossos pequenos eventos-verdade que enchiam nossas vidas de significados impressos naqueles objetos baratos, agora estão descontextualizados, por isso, serão meras tralhas. Estávamos mais perplexos do que assustados, por alguém querer levá-los: se na nossa sociedade o que vale é dinheiro, por que porras esse cara tá querendo tomar afeto?
Naquele dia, eu aproveitei uma carona para ir visitar meu amigo, afinal, era pascoa e eu nem pretendia sair de casa. No maior estilo Milan Kundera, consigo contar os acasos que me levaram até o roubo do único objeto que gostaria de ter de volta, que era o filme; insubstituível. Por acaso, tinham 3 poses no filme e por isso levei a câmera, aproveitando essa rara carona que veio me buscar em casa e por causa de uma segunda carona que me deixou perto da casa do meu amigo em Vila Isabel, aproveitei e fui lá dar um abraço. Assistimos filmes pela noite, e assim que Funeral Kings acabou, meu amigo me acompanhou até o ponto que não havia um por quê estarmos lá, – afinal, eu dormiria na casa dele, mas naquele feriado ele precisava trabalhar às 7. Foi algo que simplesmente aconteceu, fomos levados até lá, naquele instante. Não há uma lição de moral, porque assim como o maníaco da chupeta – algo que rendeu muitas piadas, diga-se de passagem –, foram eventos que simplesmente vieram enquanto seguíamos o protocolo frequentemente dito pelos pais: “espere amanhecer para vir pra casa”.
Como Funeral Kings, a minha história não é uma fábula, é uma grande metáfora sobre a vida. Uma comédia de erros, que só nos faz pensar no peso das coisas. As crianças do filme, seguem randomicamente por uma rotina que parece absurda e diante da série de símbolos do que reconhecemos como “pode dar merda”, elas parecem não conseguir extrair o resultado justamente por não irem até as últimas consequências das experiências. Talvez, uma das únicas ações concluídas – e mesmo assim, concluída por um acaso – tenha sido a morte do cachorro, algo que mexe com o cachinhos de cupido. Charlie mais uma vez ao sair intacto de suas tretas, volta a fazer merdinha: ele rouba finalmente um cobiçado DVD, que como todas as coisas da vida que a gente deseja por dias, não é lá grandes coisas. Lembro do meu amigo dizendo para eu não deletar nada do HD externo antes de eu levá-lo, mas no momento em que o HD perpetuamente disse adeus, nada foi dito, nada mais importava. Igual meus objetos, que não eram lá grandes coisas, afinal, tô bem e ainda tenho uma vida inteira para repô-los. As imagens do filme, são só imagens, são só abstração do que eu ainda posso sentir aqui; aqui, a vida.
Charlie passa o filme subvertendo as condições impostas pelos seus 14 anos em escola católica e nessas tentativas, esse subúrbio vira South Park e suas crianças parecem mais aptas a entender o mundo ao redor do que os adultos – por sinal, que adultos? Há umas típicas cenas provavelmente idealizadas no inicio dos anos 2000, dessas crianças tentando enrolar um dos poucos adultos com falas no filme, que é o típico “fracassado” de 30 anos: um balconista de locadora. Obviamente entre uma palhaçada e outra, elas vão perceber que ele não é apenas balconista e mesmo entendendo o perigo que ele representa, vão usar o revolver que encontram na mala do terceiro coroinha, o de 16 anos. Se conselho fosse bom, não dava, vendia, minha boa mãe já dizia.
Vi uma crítica sobre o filme que dá a entender que não vale a pena usar o Netflix pra isso, eu pessoalmente, acho que vale. Facilmente o comparo à minha vida, então como achar o filme desimportante? A narrativa a principio é bem confusa, por ser exibida em fragmentos – os dias da semana são marcados, o que acaba dando uma certa organização a esses fragmentos – mas com o tempo a gente entra no clima e se pega assistindo o filme mais pelo magnetismo do cachinhos – me lembra até “O Pequeno Fugitivo” ou até mesmo Doinel em “Os Incompreendidos” – do que pela história, que logo nos 30 primeiros minutos você percebe que não vai dar em nada. Então, sou pega pelo prazer de como a história é contada e não pelos resultados que ela dará, para ao fim, me ver surpreendida com a falta de sentido que parece fazer todo sentido. Me lembra séries atuais como Wilfred, que o personagem principal parece correr atrás do próprio rabo como se fosse um cachorro.
É uma história sobre amadurecimento e Charlie é um menino cheio de coragem pra ser o que é, seja lá o que for isso. Acho divertido a ponte paradoxo entre o fato deles serem coroinhas e o fato de tudo parecer como um rolar de dados, que mesmo assim, como já aprendemos com Mallarme, jamais abolirá o acaso. Se o mal está feito, está feito e a câmera se foi.
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