Vou compartilhar um texto escrito pelo Bergman, acerca de
"Cenas de um Casamento". Ele fez o roteiro primeiro para televisão em seis capítulos, por isso no Círculo Do Livro tem um mini-texto feito por ele, no qual é armada uma tentativa de situar cada episódio e como eles funcionam como um todo. Creio, que após essa entrega de processo criativo feita pelo próprio Bergman, seria inútil – até mesmo cansativo –, uma tentativa de crítica que partisse de mim. Imagino que nem todos tenham acesso a esse livro, então resolvi compartilhar aqui os comentários de Bergman que acredito serem os mais singelos, objetivos e iluminadores sobre sua obra.
Para que o leitor desprevenido não se desoriente no texto, acho que, contra o meu hábito, devo fazer aqui um comentário às seis cenas. Aquele que tomar estas diretrizes como desconsideração deverá saltá-las.
Primeira cena; Pureza e pânico: Johan e Marianne são filhos de convenções precisas e formados dentro da ideologia da segurança material. Jamais consideraram os princípios burgueses em que vivem como restritos ou falsos. Organizaram-se dentro de um padrão de vida que estão dispostos a transmitir para os descendentes. Suas atividades políticas anteriores são mais uma confirmação dessa ideia do que uma contradição.
Na primeira cena, eles apresentam uma imagem maravilhosa do que seria um casamento quase ideal, um casamento que, ainda por cima, confronta-se com uma ligação infernal. De uma maneira tranquila e equilibrada, eles se sentem orgulhosos, acham que montaram tudo da melhor forma possível. As soluções de praxe e os chavões do estilo sussurram em nossos ouvidos. Peter e Katarina sobressaem como insanos dignos de pena, enquanto Johan e Marianne organizaram toda a sua vida na melhor das formas e vivem no melhor dos mundos. No final da cena, ambos são vítimas de uma pequena adversidade. Esse acontecimento coloca-os diante de um impasse. Surge uma pequena ferida superficial que se fecha, deixando uma cicatriz, mas por baixo da cicatriz, ainda existe infecção. Pelo menos, foi dessa forma que eu pensei a coisa. Se alguém pensar de maneira diferente, também está bem.
Segunda cena; A arte de varrer para baixo do tapete: Ainda continua tudo idealmente bem, quase grandiosamente bem. Surgem pequenas preocupações, contornadas num ambiente jocoso. Apresentam-se as profissões, os ambientes de trabalho. Aparece uma certa angústia em Marianne. Ela ainda não a consegue definir, e muito menos consegue compreendê-la, mas institivamente sente que existe algo de errado entre ela e Johan. Faz um ligeiro esforço, não muito convincente, para tapar a rachadura nebulosamente suspeitada. Johan recebe também uma série de telefonemas misteriosos. À noite, depois de terem estado no teatro e terem visto Casa de bonecas de Ibsen – o que é que eles poderia ter visto de diferente? -, surge uma atmosfera de desentendimento que ambos tentam superar e que, em última instância, acaba varrida para baixo do tapete.
Terceira cena; Paula: Aí cai a guilhotina, Johan comunica de forma bastante brutal que está apaixonado por outra mulher e que pretende uma separação. Apresenta-se cheio de ânsia vital de ação e oxidado pelo egoísmo eufórico do novo amor. Marianne sucumbe, fulminada. Fica totalmente à deriva. Em alguns minutos, ela se transforma diante de nossos olhos em uma ferida sangrante e convulsiva de humilhação e desorientação.
Quarta cena; Vale de lágrimas: Veem-se novamente depois de bastante tempo. Para Johan começou tudo a ficar um pouco para o lado do inferno, embora nada se note. Pelo contrário. Para Marianne verifica-se um começo de recuperação, embora muito fraco e marcado por tudo o que se passou entre eles: a dependência perante Johan, a solidão contaminada, a vontade de que tudo volte a ficar como antigamente. Seu encontro é doloroso e desajeitado. Na mistura de reconciliação e agressividade, aproximam-se reciprocamente durante curtos momentos através do isolamento e do desprendimento. Tudo, porém, ainda está dolorido, infectado, roto. É uma cena verdadeiramente lamentável e triste, devo dizer.
Quinta cena; Os analfabetos: É agora que explode o verdadeiro inferno. Marianne começa a ficar recuperada e Johan fica cada vez mais afastado da realidade. Ambos têm a boa ideia de, em conjunto, requerer o divórcio e de utilizarem o mesmo advogado. Para assinar os papéis do divórcio encontram-se, novamente, uma noite, no escritório de Johan. De repente, toda carga vai pelos ares e surgem, arejando-se, todas as agressões contidas durante anos, todo o ódio, todo o sofrimento e toda raiva recíprocos. Entram num processo gradual de desumanização e acabam por ser realmente desagradáveis e se portarem como dois loucos que apenas têm um pensamento, principalmente o de maltratarem-se um ao outro o mais possível, tanto corporal como espiritualmente. Através de seus esforços, eles acabam até mesmo por se tornarem um pouco piores do que Peter e Katarina, da primeira cena, já que esses de qualquer maneira têm uma certa rotina no seu inferno e são por assim dizer mais profissionais em seu rancor. Esta suprema temperança, nem Johan nem Marianne ainda conseguiram aprender. Eles querem pura e simplesmente destruir-se um ao outro. E quase chegam a ser bem sucedidos nessa ambição.
Sexta cena; No meio da noite, numa casa escura, em algum lugar do mundo: Nesta altura, imagino que dois novos seres humanos começam a renascer de toda essa destruição. Talvez isso seja demasiado otimismo, mas não posso evitar que se tenha tornado assim. Tanto Johan como Marianne passaram por um vale de lágrimas e tornaram-se rico em fontes. Ambos começam um período de realfabetização em matéria de conhecimento de si mesmos, se é que, na realidade, podemos expressar nosso pensamento deste modo. Não é apenas resignação. Trata-se também de amor. Marianne pára e senta-se pela primeira vez para ouvir sua mãe, pessoa complicada. Johan vê reconciliadoramente a sua própria situação e é bom para Marianne de uma maneira inédita e adulta. Tudo, porém, ainda é desorientação e nada se tornou melhor. Todas as suas relações estão embaraçadas e suas vidas baseiam-se, incontestavelmente, num montão de feios compromissos. Mas, de qualquer maneira, eles vivem agora num mundo de verdades e de realidades, de uma forma completamente diferente em relação ao passado. Pelo menos, acho eu que sim. Não existe, de qualquer forma, uma solução por perto, e, assim, uma espécie de verdadeiro happy end não houve. Embora tivesse sido divertido chegar a um tal happy end. Se não fosse por outra razão, pelo menos teria servido para irritar as pessoas artisticamente ultra-sensíveis que por aversão a esta obra, completamente compreensível, vão começar por ter vômitos estéticos já na primeira cena.
O que é que resta mais para dizer? Este opus levou três meses para ser escrito mas representa um período bastante longo da minha vida em experiência. Não estou certo se teria sido melhor ser ao contrário, embora talvez tivesse ficado mais refinado. Eu senti uma espécie de dedicação por esses seres humanos durante todo o tempo que trabalhei com eles. Tornaram-se bastante contraditórios, por vezes infantilmente angustiados, outras vezes bastante adultos. Dizem que um bom bocado de coisas insignificantes por vezes dizem algo de importante. Mostram-se angustiados, felizes, tolos, bons, inteligentes, bem comportados, delicados, zangados, tolerantes, sentimentais, insuportáveis, e amoráveis. Tudo de uma vez só. Agora vamos ver como é que vai sair.
Farö, 28 de maio de 1972.
Ingmar Bergman
Extraído de:
BERGMAN, I. Cenas de um Casamento. São Paulo: Círculo do Livro, 1972.