sábado, 31 de maio de 2014

Sábado, paz e macarrão.

Vals - Pablo Neruda.
Yo toco el odio como pecho diurno, 
yo sin cesar, de ropa en ropa vengo
durmiendo lejos.

No soy, no sirvo, no conozco a nadie, 
no tengo armas de mar ni de madera,
no vivo en esta casa.

De noche y agua está mi boca llena. 
La duradera luna determina 
lo que no tengo.

Lo que tengo está en medio de las olas. 
Un rayo de agua, un día para mí:
un fondo férreo.

No hay contramar, no hay escudo, no hay traje, 
no hay especial solución insondable, 
ni párpado vicioso.

Vivo de pronto y otras veces sigo.
Toco de pronto un rostro y me asesina.
No tengo tiempo.

No me busquéis entonces descorriendo
el habitual hilo salvaje o la 
sangrienta enredadera.

No me llaméis: mi ocupación es ésa. 
No preguntéis mi nombre ni mi estado.
Dejadme en medio de mi propia luna, 
en mi terreno herido.


Valsa - Pablo Neruda.
Eu toco o ódio como peito diurno,
sem cessar, de roupa em roupa venho
dormindo longe.

Não sou, não sirvo, não conheço ninguém,
não tenho armas de mar nem de madeira,
não vivo nesta casa.

De noite e água está a minha boca cheia.
A duradoura lua determina
o que não tenho.

O que tenho está no meio das ondas.
Um raio de água, um dia para mim:
um fundo férreo.

Não há quebra-mar, não há escudo, não há traje;
não há especial solução insondável,
nem pálpebra viciosa.

Vivo logo e outras vezes continuo.
Toco logo um rosto e me assassina.
Não tenho tempo.

Não me procureis então percorrendo outra vez
o habitual fio selvagem
ou a sangrenta trepadeira.

Não me chameis: a minha ocupação é essa.
Não pergunteis o meu nome nem o meu estado.
Deixai-me em meio à minha própria lua,
no meu terreno ferido.


Tradução de Eliana Zagury; no livro "Pablo Neruda: Antologia Poética", da editora "Livraria José Olympio". Rio de Janeiro, 1976.

Passagem, calor e aguada


Mollica, você está melhor? Ta conseguindo respirar agora? Eu espero que sim...A morte não pode ser um descanso, eu lamento te dizer isso, mas pelo menos ela nos liberta de amarras que a vida não pode soltar, como a falta de ar.
Não estávamos mais próximos no fim da sua vida mas você se lembrava de mim com carinho e isso é toda a aproximação que precisamos. Mesmo assim eu te sinto atravessando, nesse momento, os planos pictóricos e as cores. Ainda te ouço gritar elogios, história da arte, experiência de vida, críticas.
Você me protegeu. Você apresentou o Rio de Janeiro da única forma que ele poderia ser apresentado aos seus alunos.
Pelo menos você se torna agora tudo aquilo que te angustiava por não ser em vida, um quadro, uma obra, uma cor. Na verdade, se eu for buscar na minha memória eu só lembro de você assim, como cor.
Não se preocupe, isso tudo é apenas um bilhete, eu sei que você está sem tempo agora, mas só queria dizer que ta tudo bem. Que as dores da vida foram purgadas na arte. Mas você já sabe disso, não é? Acho que você percebe agora que a morte não é para ajustar nossos erros, mas para perceber que já os ajustamos em vida.
Eu não sei nada disso, professor, só estou falando aquilo que você falaria para mim.
Eu espero não ter te decepcionado por não me sentir mais um possível artista. Eu ainda tenho chances? Mesmo ríspido eu sinto que você foi o único quem acreditou em mim.
Mestre, você foi o primeiro. E justo por isso eu não quero estragar nada fazendo uma pretensa homenagem ou qualquer coisa mais floreada, só quero poder dizer um até logo.
Eu sei que agora você me escuta.
Vou manter as saudades de sempre, professor.
Muito obrigado
Do seu aluno, que era pra você: "um merdinha de 14 anos que já tem visão de artista"

terça-feira, 13 de maio de 2014

Cenas De Um Casamento, por Bergman.






Vou compartilhar um texto escrito pelo Bergman, acerca de "Cenas de um Casamento". Ele fez o roteiro primeiro para televisão em seis capítulos, por isso no Círculo Do Livro tem um mini-texto feito por ele, no qual é armada uma tentativa de situar cada episódio e como eles funcionam como um todo. Creio, que após essa entrega de processo criativo feita pelo próprio Bergman, seria inútil – até mesmo cansativo –, uma tentativa de crítica que partisse de mim. Imagino que nem todos tenham acesso a esse livro, então resolvi compartilhar aqui os comentários de Bergman que acredito serem os mais singelos, objetivos e iluminadores sobre sua obra.


Para que o leitor desprevenido não se desoriente no texto, acho que, contra o meu hábito, devo fazer aqui um comentário às seis cenas. Aquele que tomar estas diretrizes como desconsideração deverá saltá-las.

Primeira cena; Pureza e pânico: Johan e Marianne são filhos de convenções precisas e formados dentro da ideologia da segurança material. Jamais consideraram os princípios burgueses em que vivem como restritos ou falsos. Organizaram-se dentro de um padrão de vida que estão dispostos a transmitir para os descendentes. Suas atividades políticas anteriores são mais uma confirmação dessa ideia do que uma contradição.

Na primeira cena, eles apresentam uma imagem maravilhosa do que seria um casamento quase ideal, um casamento que, ainda por cima, confronta-se com uma ligação infernal. De uma maneira tranquila e equilibrada, eles se sentem orgulhosos, acham que montaram tudo da melhor forma possível. As soluções de praxe e os chavões do estilo sussurram em nossos ouvidos. Peter e Katarina sobressaem como insanos dignos de pena, enquanto Johan e Marianne organizaram toda a sua vida na melhor das formas e vivem no melhor dos mundos. No final da cena, ambos são vítimas de uma pequena adversidade. Esse acontecimento coloca-os diante de um impasse. Surge uma pequena ferida superficial que se fecha, deixando uma cicatriz, mas por baixo da cicatriz, ainda existe infecção. Pelo menos, foi dessa forma que eu pensei a coisa. Se alguém pensar de maneira diferente, também está bem.

Segunda cena; A arte de varrer para baixo do tapete: Ainda continua tudo idealmente bem, quase grandiosamente bem. Surgem pequenas preocupações, contornadas num ambiente jocoso. Apresentam-se as profissões, os ambientes de trabalho. Aparece uma certa angústia em Marianne. Ela ainda não a consegue definir, e muito menos consegue compreendê-la, mas institivamente sente que existe algo de errado entre ela e Johan. Faz um ligeiro esforço, não muito convincente, para tapar a rachadura nebulosamente suspeitada. Johan recebe também uma série de telefonemas misteriosos. À noite, depois de terem estado no teatro e terem visto Casa de bonecas de Ibsen – o que é que eles poderia ter visto de diferente? -, surge uma atmosfera de desentendimento que ambos tentam superar e que, em última instância, acaba varrida para baixo do tapete.

Terceira cena; Paula: Aí cai a guilhotina, Johan comunica de forma bastante brutal que está apaixonado por outra mulher e que pretende uma separação. Apresenta-se cheio de ânsia vital de ação e oxidado pelo egoísmo eufórico do novo amor. Marianne sucumbe, fulminada. Fica totalmente à deriva. Em alguns minutos, ela se transforma diante de nossos olhos em uma ferida sangrante e convulsiva de humilhação e desorientação.

Quarta cena; Vale de lágrimas: Veem-se novamente depois de bastante tempo. Para Johan começou tudo a ficar um pouco para o lado do inferno, embora nada se note. Pelo contrário. Para Marianne verifica-se um começo de recuperação, embora muito fraco e marcado por tudo o que se passou entre eles: a dependência perante Johan, a solidão contaminada, a vontade de que tudo volte a ficar como antigamente. Seu encontro é doloroso e desajeitado. Na mistura de reconciliação e agressividade, aproximam-se reciprocamente durante curtos momentos através do isolamento e do desprendimento. Tudo, porém, ainda está dolorido, infectado, roto. É uma cena verdadeiramente lamentável e triste, devo dizer.

Quinta cena; Os analfabetos: É agora que explode o verdadeiro inferno. Marianne começa a ficar recuperada e Johan fica cada vez mais afastado da realidade. Ambos têm a boa ideia de, em conjunto, requerer o divórcio e de utilizarem o mesmo advogado. Para assinar os papéis do divórcio encontram-se, novamente, uma noite, no escritório de Johan. De repente, toda carga vai pelos ares e surgem, arejando-se, todas as agressões contidas durante anos, todo o ódio, todo o sofrimento e toda raiva recíprocos. Entram num processo gradual de desumanização e acabam por ser realmente desagradáveis e se portarem como dois loucos que apenas têm um pensamento, principalmente o de maltratarem-se um ao outro o mais possível, tanto corporal como espiritualmente. Através de seus esforços, eles acabam até mesmo por se tornarem um pouco piores do que Peter e Katarina, da primeira cena, já que esses de qualquer maneira têm uma certa rotina no seu inferno e são por assim dizer mais profissionais em seu rancor. Esta suprema temperança, nem Johan nem Marianne ainda conseguiram aprender. Eles querem pura e simplesmente destruir-se um ao outro. E quase chegam a ser bem sucedidos nessa ambição.

Sexta cena; No meio da noite, numa casa escura, em algum lugar do mundo: Nesta altura, imagino que dois novos seres humanos começam a renascer de toda essa destruição. Talvez isso seja demasiado otimismo, mas não posso evitar que se tenha tornado assim. Tanto Johan como Marianne passaram por um vale de lágrimas e tornaram-se rico em fontes. Ambos começam um período de realfabetização em matéria de conhecimento de si mesmos, se é que, na realidade, podemos expressar nosso pensamento deste modo. Não é apenas resignação. Trata-se também de amor. Marianne pára e senta-se pela primeira vez para ouvir sua mãe, pessoa complicada. Johan vê reconciliadoramente a sua própria situação e é bom para Marianne de uma maneira inédita e adulta. Tudo, porém, ainda é desorientação e nada se tornou melhor. Todas as suas relações estão embaraçadas e suas vidas baseiam-se, incontestavelmente, num montão de feios compromissos. Mas, de qualquer maneira, eles vivem agora num mundo de verdades e de realidades, de uma forma completamente diferente em relação ao passado. Pelo menos, acho eu que sim. Não existe, de qualquer forma,  uma solução por perto, e, assim, uma espécie de verdadeiro happy end não houve. Embora tivesse sido divertido chegar a um tal happy end. Se não fosse por outra razão, pelo menos teria servido para irritar as pessoas artisticamente ultra-sensíveis que por aversão a esta obra, completamente compreensível, vão começar por ter vômitos estéticos já na primeira cena.

O que é que resta mais para dizer? Este opus levou três meses para ser escrito mas representa um período bastante longo da minha vida em experiência. Não estou certo se teria sido melhor ser ao contrário, embora talvez tivesse ficado mais refinado. Eu senti uma espécie de dedicação por esses seres humanos durante todo o tempo que trabalhei com eles. Tornaram-se bastante contraditórios, por vezes infantilmente angustiados, outras vezes bastante adultos. Dizem que um bom bocado de coisas insignificantes por vezes dizem algo de importante. Mostram-se angustiados, felizes, tolos, bons, inteligentes, bem comportados, delicados, zangados, tolerantes, sentimentais, insuportáveis, e amoráveis. Tudo de uma vez só. Agora vamos ver como é que vai sair.

Farö, 28 de maio de 1972.


Ingmar Bergman

Extraído de: 
BERGMAN, I. Cenas de um Casamento. São Paulo: Círculo do Livro, 1972.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Amor de Infância

“Camilo, eu vou sair do hospital bem rapidinho. Eu vou na sua casa pra gente brincar. Ass: Guilhermo”
Guilhermo saiu do hospital morto, nunca brincou em minha casa e eu nunca mais ouvi sua voz.
Nós tínhamos cinco ou quatro anos, dois moleques bagunceiros que gostavam das mesmas coisas e dividiam as mesmas namoradas na creche. Governávamos o pátio do recreio, vivíamos grudados e estávamos no inicio do aprendizado sobre ciúmes.
Quando Gui Gui ficou doente meu pai, muito sem jeito, me levou para visita-lo. Antes de entrarmos no quarto, ele virou e disse: “Filho, o Gui Gui tá muito dodói, tá usando roupa de hospital e por conta do tratamento ele ficou carequinha. Então não fica reparando e nem comentando isso, tá bom?” Mas crianças se entendem e não precisam desse código de etiqueta que os adultos inventaram. Fora que a saudade que eu tinha do Gui Gui era tão grande que não conseguia nem pensar no estado dele.
O sol estava bonito naquela tarde e fazia todas as pedrinhas místicas na janela brilharem. Guilhermo me explicou para que cada uma servia, e até hoje penso que foi com ele que começou a minha paixão pelo universo oculto, místico.
Quando ele morreu ficaram, de muitas, três lembranças bem marcadas na minha cabeça: a do marcador de livros com o recadinho de que ele melhoraria, a visita ao hospital e da sua casa vazia, sem ele, sem sol.
Essa última lembrança da casa eu até hoje não sei dizer se foi um sonho, mas lembro de mim sozinho andando pela casa, pela beira da piscina, em frente à escadaria... Lembro de um dia muito nublado, muito silencioso, muito triste. Não tinha Gui Gui na casa e eu também não o procurava, só tentava lembrar e guardar lembranças.
Gui Gui morreu como meu primeiro amor. Talvez até comentem: “Nossa, você se descobriu gay cedo né?” Não sei dizer. Eu descobri o amor muito cedo, aquele amor bonito de criança. Nós não víamos necessidade em nos classificar e nem dar nomes pra relação, a gente vivia junto, só isso. Me descobri também muito homem por ver, sentir e encarar aquela morte da forma que encarei.
Confesso sentir saudades até hoje do Gui Gui, mesmo depois de Leonardos, Edsons, Murillos, Fernandos, Gustavos e um Caio. Sinto saudades da imagem que guardei dele, daquele menino que estava sempre do meu lado, que me queria sempre em sua casa e que não pensava em nada que não me incluísse.
Talvez Gui Gui seja hoje um anjinho que me cerca, um cupido ciumento que só permite poucos namoros em minha vida.
Espero que depois que ele “melhorou” e saiu do hospital ele tenha ido à minha casa e saiu do hospital ele tenha ido à minha casa e brincado muito comigo enquanto eu pensava estar sozinho. E espero que além de estar me observando, ele também esteja aguardando o dia em que eu vá retribuir a visita.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Funeral Kings: entre assaltos e acasos, o mal está feito.



Eu e um amigo, após vermos esse filme em uma segunda, fomos para um ponto de ônibus perto da casa dele às seis da manhã, quando moradores começam a descer com os cachorros, padarias a serem abertas e o Sol a anunciar um futuro gracejo. Por acaso, fomos abordados por um personagem – desculpem-me, mas não consigo vê-lo como outra coisa – que estava claramente trincado. O indivíduo, como o policial se referiu no RO – caricatamente genial – portava uma faca pequena e lascada, e disse que queria algo de valor, qualquer coisa de valor; o que tínhamos a oferecer, no caso, era um celular velho, um HD externo do meu amigo com todas as temporadas de Queer as Folk e a minha câmera analógica com um filme cheio de imagens fofas em aniversários, que convenhamos, imagino não garantir muita grana quando é trocada por crack. Ah, e o dinheiro, sempre o dinheiro! Tínhamos 40 reais. Sem valor, mas que deu pra levar, só pela aporrinhação: minha chave de casa, carteira de identidade e carteira do plano de saúde, o de praxe. 

Ele pegou a bolsa rasgada que já passou muitos perrengues comigo, enfiou debaixo do braço e fez sinal para um ônibus que ironicamente ia para perto da minha casa. Era uma figura com duas chupetas penduradas no pescoço, embora alto, era bastante magro e assim que entrou no ônibus, aquela figura me fez ser pega por uma vontade de gargalhar enquanto meu amigo estava com cara de “que porra é essa?”. Ele perguntando se éramos namorados, como se fosse fazer alguma diferença. “Só é a minha amiga, mata”. Ele falando pra gente não fazer nada, pois iríamos nos machucar, despertando todo o ar de tragédia-comédia de uma realidade paralela em que somos esfaqueados e morremos de tétano. É triste: nossos pequenos eventos-verdade que enchiam nossas vidas de significados impressos naqueles objetos baratos, agora estão descontextualizados, por isso, serão meras tralhas. Estávamos mais perplexos do que assustados, por alguém querer levá-los: se na nossa sociedade o que vale é dinheiro, por que porras esse cara tá querendo tomar afeto?

Naquele dia, eu aproveitei uma carona para ir visitar meu amigo, afinal, era pascoa e eu nem pretendia sair de casa. No maior estilo Milan Kundera, consigo contar os acasos que me levaram até o roubo do único objeto que gostaria de ter de volta, que era  o filme; insubstituível. Por acaso, tinham 3 poses no filme e por isso levei a câmera, aproveitando essa rara carona que veio me buscar em casa e por causa de uma segunda carona que me deixou perto da casa do meu amigo em Vila Isabel, aproveitei e fui lá dar um abraço. Assistimos filmes pela noite, e assim que Funeral Kings acabou, meu amigo me acompanhou até o ponto que não havia um por quê estarmos lá, – afinal, eu dormiria na casa dele, mas naquele feriado ele precisava trabalhar às 7. Foi algo que simplesmente aconteceu, fomos levados até lá, naquele instante. Não há uma lição de moral, porque assim como o maníaco da chupeta – algo que rendeu muitas piadas, diga-se de passagem –, foram eventos que simplesmente vieram enquanto seguíamos o protocolo frequentemente dito pelos pais: “espere amanhecer para vir pra casa”

Como Funeral Kings, a minha história não é uma fábula, é uma grande metáfora sobre a vida. Uma comédia de erros, que só nos faz pensar no peso das coisas. As crianças do filme, seguem randomicamente por uma rotina que parece absurda e diante da série de símbolos do que reconhecemos como “pode dar merda”, elas parecem não conseguir extrair o resultado justamente por não irem até as últimas consequências das experiências. Talvez, uma das únicas ações concluídas – e mesmo assim, concluída por um acaso – tenha sido a morte do cachorro, algo que mexe com o cachinhos de cupido. Charlie mais uma vez ao sair intacto de suas tretas, volta a fazer merdinha: ele rouba finalmente um cobiçado DVD, que como todas as coisas da vida que a gente deseja por dias, não é lá grandes coisas. Lembro do meu amigo dizendo para eu não deletar nada do HD externo antes de eu levá-lo, mas no momento em que o HD perpetuamente disse adeus, nada foi dito, nada mais importava. Igual meus objetos, que não eram lá grandes coisas, afinal, tô bem e ainda tenho uma vida inteira para repô-los. As imagens do filme, são só imagens, são só abstração do que eu ainda posso sentir aqui; aqui, a vida.

Charlie passa o filme subvertendo as condições impostas pelos seus 14 anos em escola católica e nessas tentativas, esse subúrbio vira South Park e suas crianças parecem mais aptas a entender o mundo ao redor do que os adultos – por sinal, que adultos? Há umas típicas cenas provavelmente idealizadas no inicio dos anos 2000, dessas crianças tentando enrolar um dos poucos adultos com falas no filme, que é o típico “fracassado” de 30 anos: um balconista de locadora. Obviamente entre uma palhaçada e outra, elas vão perceber que ele não é apenas balconista e mesmo entendendo o perigo que ele representa, vão usar o revolver que encontram na mala do terceiro coroinha, o de 16 anos. Se conselho fosse bom, não dava, vendia, minha boa mãe já dizia.

Vi uma crítica sobre o filme que dá a entender que não vale a pena usar o Netflix pra isso, eu pessoalmente, acho que vale. Facilmente o comparo à minha vida, então como achar o filme desimportante? A narrativa a principio é bem confusa, por ser exibida em fragmentos – os dias da semana são marcados, o que acaba dando uma certa organização a esses fragmentos – mas com o tempo a gente entra no clima e se pega assistindo o filme mais pelo magnetismo do cachinhos – me lembra até “O Pequeno Fugitivo” ou até mesmo Doinel em “Os Incompreendidos” – do que pela história, que logo nos 30 primeiros minutos você percebe que não vai dar em nada. Então, sou pega pelo prazer de como a história é contada e não pelos resultados que ela dará, para ao fim, me ver surpreendida com a falta de sentido que parece fazer todo sentido. Me lembra séries atuais como Wilfred, que o personagem principal parece correr atrás do próprio rabo como se fosse um cachorro. 

É uma história sobre amadurecimento e Charlie é um menino cheio de coragem pra ser o que é, seja lá o que for isso. Acho divertido a ponte paradoxo entre o fato deles serem coroinhas e o fato de tudo parecer como um rolar de dados, que mesmo assim, como já aprendemos com Mallarme, jamais abolirá o acaso. Se o mal está feito, está feito e a câmera se foi.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Vi Cente

Há algo de inconstante em sua beleza, alguma coisa que me atrapalha os sentidos, que muda meu itinerário. Acontece que ela, a sua beleza, tá sempre em água corrente, mudando e limpando a imagem anterior. Não é como aquela beleza redonda de revista e de tv, que cansa, que acaba, que você para de descobrir.

A beleza descoberta todo dia na mesma pessoa é algo que me intriga. Sim, porque não sei se posso dizer que me encanta, não me faz bem; me perturba o sono. Tanto que te escrevo a essa hora. Essa coisa de experimentar a beleza de alguém mesmo em sua ausência, mesmo em suas faltas é meio assombrosa. Não gosto de me sentir perseguido, principalmente por algo que não me diz respeito.

Talvez realmente tenha algo a ver comigo. Quero dizer, você obriga todo mundo a ter alguma coisa a ver com a sua beleza, com o seu sorriso. É esse lance narcísico de sorrir só para ver quantas pessoas vão parar para olhar. O que você não sabe (ou que talvez cruelmente saiba) é que essa sua brincadeira prende.

Você não sabe que uma beleza que não é sua, que não é nem próxima de você, pode doer tanto, não é? É algo que dói logo no olhar. Logo no primeiro contato. Pois quando você vê, você sente: Vicente.